“E a morte rubra dominava tudo.”
– Edgar Allan Poe
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Tudo estava perfeitamente em ordem. O vermelho e o branco contrastavam de forma bela, como vinho e água, e o cheiro ali evocava uma mistura divina de sangue e limpeza. Todas as movimentações eram ensaiadamente coordenadas, comandadas por um toque suave e delicado, que lembrava muito uma peça de música clássica; um ballet, talvez. Para um olhar atento, aquilo realmente era como uma dança, executada minuciosamente bem pelo mais habilidoso grupo de bailarinos do mundo. A vida corrida em total sintonia e completa harmonia naquela sala.
– Bisturi – pediu o cirurgião.
Imediatamente lhe foi entregue. Ele ouvia ativamente os sons com intervalos regulares – beep, beep, beep – produzidos pelo monitor multiparamétrico, e, com rápidas olhadelas, se mantinha sempre ciente dos dados vitais do paciente – pressão arterial, saturação de oxigênio, temperatura e frequências cardíaca e respiratória. Nunca perdia o foco enquanto operava, e estava sempre atento a qualquer detalhe que pudesse lhe causar problemas. Tinha a mente cirúrgica, nos sentidos literal e figurado da palavra, e pensava sempre como um homem frio, preciso e implacável. Realizou a incisão com precisão assustadora, e um jato de sangue ocorreu. Seu capote branco, que já estava salpicado de gotas vermelhas, imediatamente ficou empapado de líquido espesso vermelho vivo. O cirurgião não esboçou absolutamente nenhuma reação. Quantas vezes, afinal, seus trajes já não haviam ficado assim? Ele era experiente – incrivelmente experiente. Era, há mais de vinte anos, cirurgião geral. Já tinha realizado milhares de operações, desde as simples até as mais complexas, e nunca se intimidava com o serviço. Foi responsável por feitos impressionantes – verdadeiras façanhas – que tiveram sonora repercussão entre os médicos. Dezesseis anos antes, se projetou definitivamente no mercado ao salvar a vida do filho de um grande empresário, em uma cirurgia de emergência por perfuração abdominal após grave acidente de carro. Seu êxito notável lhe rendeu bom reconhecimento profissional em todo o meio, e não menos importante, lhe garantiu uma boa bolada e um futuro de ótimos – e ricos – clientes. Pagamentos astronômicos, muito agradáveis, todos vindo com o sangue alheio.
Dez anos atrás, fora contratado para a cirurgia de ponte de safena em um famoso senador. Conseguiu sem dificuldades. Há seis, transplantara pulmões para um bilionário, portador de fibrose cística, e mais uma vez teve estrondoso triunfo. No outono passado, venceu todas as improbabilidades e teve incrível sucesso na separação dos filhos gêmeos-siameses de um astro apresentador de televisão. Aplicara próteses e operara casos de emergência médica. Retirara centenas de tumores e fizera inúmeras suturas. Era convidado a apresentar palestras em grandes congressos, escrever artigos para revistas e dar entrevistas na televisão. Se algum médico pudesse ser chamado de celebridade, esse médico era aquele cirurgião. O homem certo para as condições erradas, procurado sempre que algo dava errado com certas pessoas. Não tinha um mau currículo. Era exemplar. Ali, naquela sala branca manchada de vermelho, ele estava em casa.
E lá estava ele, totalmente alerta, comandando o procedimento do transplante de coração daquele que era um dos mais influentes advogados do estado. O corpo sedado em seu leito – iluminado pela luz branca do foco cirúrgico, e parcialmente coberto pelo campo cirúrgico branco já manchado de vermelho – já tinha o tórax aberto, e o coração doente estava sendo retirado após estabilização da circulação extracorpórea. O procedimento corria bem, e o novo coração logo seria posicionado e fixado quando a fala apreensiva de um assistente rompeu a camada de gelo que envolvia a cena:
– Ele está sangrando.
O beep-beep do monitor começou a ocorrer em intervalos gradativamente menores, o que significava que a frequência cardíaca estava aumentando; uma estratégia primitiva e inteligente do corpo humano para tentar compensar a perda de sangue e tentar manter o fornecimento de oxigênio adequado para os outros órgãos funcionarem. O cirurgião, é claro, já sabia, e não se surpreendeu. Tinha completa consciência de que o transplante cardíaco era um dos mais desafiadores procedimentos cirúrgicos existentes, e que hemorragias poderiam aparecer até sob os trabalhos do profissional mais competente. Vinha pensando nisso desde a marcação da operação, na verdade, e estava obstinado. A equipe poderia tentar pará-lo, mas as vezes o sangramento era inevitável, e o paciente não resistia. Coisas da vida, não? A morte, é claro, é algo natural, e sempre pode dar as caras, ainda mais sobre condições tão desfavoráveis quanto um transplante de tamanha magnitude, e uma fatalidade como aquela não era minimamente suficiente para abalar a reputação de um cirurgião-referência. Poderia acontecer com qualquer um, ele sabia. Apenas não podia se dar ao luxo de deixar algo assim ocorrer com uma grande frequência. As mortes tinham que ser poucas, com um longo intervalo entre elas e causas consideradas irremediáveis, só isso. Dois ou três anos, precisão cirúrgica nas mãos e casos bastante sérios eram o suficiente. Ninguém poderia culpa-lo. Nem o mais perfeito cirurgião do mundo era, de fato, perfeito, e alguns pacientes também morriam em suas mãos. Sabia que empilharia mais uma sequência de extraordinários trabalhos antes que algo assim pudesse voltar a acontecer. Ele tinha tudo sob controle. Dessa forma, ele se manteria no topo, seu grande fluxo de pacientes importantes continuaria jorrando como uma artéria pulsante aberta e os pagamentos chegariam mais do que nunca em dinheiro e sangue.
O óbito foi confirmado as 18:01.
Houve um abalo geral, mas não surpresa. O caso era muito complexo, no final das contas.
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Tudo estrava perfeitamente em ordem. O vermelho e o branco contrastavam de forma bela, como vinho e água, e o cheiro ali evocava uma mistura divina de sangue e limpeza. Todas as peças estavam cirurgicamente bem posicionadas, e podia-se ouvir no ar o toque suave de uma peça de música clássica; uma valsa, talvez. Havia perfeita sintonia e harmonia naquela sala. O cirurgião chegara em casa.
Deixou os sapatos no hall do elevador e entrou no apartamento – as meias brancas abafadas contra o carpete macio vermelho vivo, que cobria todo o chão. No lado leste, enorme sofá era estofado com veludo vermelho. Nas paredes, mortalmente brancas, quadros pintados pelos mais badalados artistas do mundo estavam pendurados por toda parte, todos em tinta vermelha. Uma mesinha de centro completamente vermelha se erguia do meio da sala, com belas peças de vidro carnival vermelho apoiadas nela. Imponente, no lado oeste, havia um grande e poderoso bar vermelho, abrigo para uma enorme quantidade de garrafas, cujo conteúdo sempre o remetera a sangue fresco. Arterial para as mais claras e venoso para as mais escuras, por favor. Na parede oposta a porta de entrada, ficava a escrivaninha e uma novíssima máquina de escrever, ambas na cor vermelha. Ao lado da máquina, haviam, também, dois grupos de folhas de papel empilhadas. O primeiro grupo continha folhas completamente brancas, intocadas – quase nuas. As do segundo já estavam integralmente cobertas de letras, datilografadas, é claro, em vermelho. Ele tinha na mesma sala, além disso tudo, uma excelente cristaleira vermelha, com incríveis peças brilhantes e frágeis. Poderia quebra-las a qualquer momento, se quisesse. Sua estante era enorme e vermelha, e todos os livros ali expostos tinhas as páginas brancas e a encadernação em couro vermelho. Lustres grandiosos pendiam do teto brando como enormes cascatas de gelo vermelho. A mesa de jantar de doze lugares era pesada e vermelha, e todas as cadeiras também. De todos os cantos ao seu redor, a avalanche vermelha inundava o branco, e a máscara morte rubra dominava tudo. Era naquele paraíso de vermelho no branco infernal que ele se sentia em casa, e eram dias como aquele que faziam tudo valer a pena.
Atravessando tranquilamente o carpete – desfilando pelo tapete vermelho – chegou a uma porta lateral e a destrancou. O corredor que se seguia era escuro, e se tornou um breu com o fechar da porta quando o cirurgião nele entrou. No silêncio, podia-se ouvir um gotejar. Seguiu o corredor em direção ao som, e passando pelas curvas labirínticas na treva, atingiu a luz: uma pequena lâmpada de brilho amarelo e fraco, pendurada no teto por um fio elétrico. Ela iluminava uma pia velha de porcelana, muito suja e encardida. Da torneira, pingavam gotas vermelhas em intervalos regulares. Beep, beep, beep. Que engraçado! O cirurgião abriu a torneira e um forte jato de sangue escorreu. Começou a lavar as mãos.